Para desespero dos puristas do pedigree, a moda agora é misturar duas raças para ter um cão inusitado
Duda Teixeira
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O que dá misturar um cão labrador, tradicional guia de cegos, com um poodle, cachorrinho de madame? Um labradoodle. E o que dá cruzar um pug sem focinho com um alegre beagle? Um puggle. O que no passado era chamado de vira-lata, isto é, um cão sem raça definida, nos últimos dois anos virou moda. Nos Estados Unidos, esses cruzamentos inesperados estão sendo levados a sério por dezenas de canis, que se tornaram conhecidos como "designers de cachorros". O campeão de golfe Tiger Woods comprou um labradoodle, e o ator Sylvester Stallone também tem seu híbrido, como é chamado o animal surgido desses cruzamentos. Um labradoodle pode custar 2.500 dólares, preço superior ao de boa parte dos cães de pedigree tradicional. O Clube de Cães Híbridos Americano já registrou 400 raças de design, número que ultrapassa as 338 raças puras aceitas pela Federação Cinológica Internacional (FCI).
O designer de cães está em alta também na Austrália, no Canadá e na Inglaterra – no Brasil, por enquanto, híbridos só aqueles nascidos do acaso. Na Inglaterra, país responsável pela criação de muitas das raças atuais, o interesse pelos híbridos ameaça extinguir alguns pedigrees tradicionais. Sete deles registraram menos de 100 nascimentos no ano passado, entre eles o sussex spaniel, bastante popular no passado. São necessários pelo menos 300 cãezinhos por ano para garantir a sobrevivência de uma raça. Do ponto de vista genético, a mistura é saudável. Uma raça pura de cão é criada a partir do cruzamento controlado de animais com características que o criador deseja salientar. Fatalmente, isso inclui cruzamentos consanguíneos, o que reduz a diversidade genética dos animais. "Isso abre espaço para a manifestação de genes recessivos, onde está a maioria das doenças", diz o agrônomo Fernando Enrique Madalena, professor de genética animal da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte.
Estima-se que um em cada quatro animais de pedigree possua alguma doença de origem genética. Os dálmatas ficam surdos com a idade, os rottweilers perdem o movimento das patas traseiras, os boxers são suscetíveis a câncer e os cocker spaniels sofrem com inflamações no ouvido. "Quando as pessoas dizem que os vira-latas são mais saudáveis, estão falando a mais pura verdade", diz o zootecnista e adestrador Alexandre Rossi, de São Paulo. A única preocupação dos designers caninos é a de criar produtos atraentes para os consumidores.
Desde que domesticou os primeiros cães, há mais de 12.000 anos, o homem vem moldando esses animais segundo os próprios interesses. No início, acredita-se que tenha selecionado aqueles capazes de ajudar na caça e na guarda dos acampamentos. A maioria das raças que conhecemos hoje, contudo, surgiu no século XIX. Foi quando exposições e concursos na Europa incentivaram a busca de novas raças por motivos estéticos. Orelhas que se arrastam pelo chão, como as do basset, ou olhos que lembram os de um bebê, como os do pug, tornaram-se atributos desejados em um cão. No século passado, a vida em apartamento nas grandes cidades fez aumentar a demanda por cachorros pequenos, como os chihuahuas e os chamados toys, versões menores de animais bem conhecidos.
O poodle é um dos cães mais utilizados nos acasalamentos de híbridos. Já foram feitas experiências bem-sucedidas de poodle com outras 38 raças. Há várias explicações para essa preferência. A raça é apreciada pelas mulheres e tem bom tamanho para viver em apartamento. Infelizmente, solta pêlos. "Muitos homens não compravam esse cachorro porque tinham alergia ou porque não gostavam do temperamento azedo do poodle. Hoje, todos podem ter o seu labradoodle", disse a VEJA o americano Andre Calbert, fundador da Designer Doggies, que há dois anos vende híbridos pela internet.
Os cães híbridos não são aceitos pela FCI, que congrega 83 associações de criadores de cães em todo o mundo e zela pela pureza das raças cujas características já estão bem definidas. "O que os americanos estão fazendo é pura maluquice. Nem sequer poderíamos dizer que são raças", critica Carlos Manso, árbitro da Confederação Brasileira de Cinofilia, no Rio de Janeiro. A entidade, filiada à FCI, segue rígidos critérios para admitir uma nova raça. É preciso comprovar a existência de oito linhagens diferentes, de forma a evitar o cruzamento consanguíneo, e a passagem de pelo menos oito gerações. Os híbridos não atendem a essas exigências. Os criadores de labradoodles, surgidos na Austrália em 1989, ainda tentam fixar como características hereditárias um animal com porte grande e pelagem fofa. Os filhotes parecidos com o labrador ou o poodle original são descartados.
No Brasil, o cruzamento acidental entre cães de raças diferentes reserva algumas surpresas. "Um cliente me pediu para ficar com um bernese por três meses em casa, e depois minha labradora apareceu grávida", diz Carolina Lafemina, dona de uma pet shop em São Paulo. Carolina foi à internet para saber mais sobre sua nova cachorra, Diva, e descobriu que a mistura já existia, com três nomes: "labernois", "boulab" e "labernese". Ela teve alguma dificuldade em enquadrar as características da cadela numa dessas variações: Diva tem a pontinha do rabo branca, como os laberneses, mas falta um crucifixo branco no peito. "O certo é que ela herdou o jeito carinhoso e agitado do labrador e a sociabilidade do bernese", afirma.
Acasalamentos acidentais nem sempre têm final feliz. "Thor já mordeu todo mundo em casa", diz o engenheiro de produção Luiz Marcelo Bordini. "Sempre que se sente acuado, ele reage de maneira bruta." O cachorro é filho acidental de uma mãe weimaraner com labrador. Uma das justificativas para a depuração de raças é que, com cruzamentos controlados, é possível selecionar apenas os cães de melhor temperamento. Os híbridos da moda passaram por esse processo, embora por menos tempo que os cães de raça com pedigree. Seja como for, qualquer um que já tenha comprado um cão sabe que não há total garantia de comportamento. O bicho, que se esperava de uma raça mansa e pacata, pode se revelar um monstrinho.
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Fonte: Veja on line
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