Peixes mortos ou resíduos da filetagem podem se transformar em silagem, um produto artesanal, de alto valor nutritivo, que pode ser incorporado a ração comercial.
Por Thaís Moron Machado Zootecnista
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Os resíduos obtidos na aqüicultura, na pesca e na elaboração de produtos a base de pescado podem chegar, em alguns casos, a 70% do peso inicial. Peixes mortos, espécies sub-utilizadas na piscicultura, fauna acompanhante de pesca marítima, cabeça, pele, espinhas e vísceras de indústrias de processamento, são considerados matéria-prima de baixa qualidade e, quando não utilizados, causam problemas ao meio ambiente trazendo prejuízos ecológicos, sanitários e econômicos. Por outro lado, o uso adequado destes dejetos através de uma fermentação biológica controlada ou silagem, resulta num produto nobre, de alto valor biológico na nutrição animal, capaz de trazer um incentivo econômico importante às indústrias e aos aqüicultores que os produzem.
Fermentação
A silagem é o processo de fermentação onde os elementos orgânicos presentes nos resíduos dos pescados (açúcares, proteínas, aminoácidos, compostos nitrogenados e nucleotídeos) vão constituir o substrato sobre o qual vão atuar os microorganismos, que os convertem em moléculas mais simples para utilizá-las como fonte de energia para sua sobrevivência.
Os métodos de fermentação têm sido utilizados há muito tempo para conservar ou utilizar excedentes de matéria-prima ou para reutilizar os desperdícios orgânicos. Entre eles podemos destacar:
- Uso de altas concentrações de sal (15 a 20% de sal no produto final), com o inconveniente do alto conteúdo de sal limitar a ingestão das proteínas;
-Uso de ácidos inorgânicos, como o ácido acético e clorídrico, com as desvantagens de exigir manipulação cuidadosa desses ácidos. Nesse método de fermentação é necessário neutralizar o produto final com cal antes de utilizá-lo para a alimentação de animais. Além disso, existe a produção de grandes quantidades de líquidos ácidos durante o processo;
-Uso de ácidos orgânicos, como os ácidos fosfórico, fórmico e propiônico. Pode-se efetuar combinações destes ácidos orgânicos com ácidos inorgânicos em menores proporções. Permanece aqui também a dificuldade de manipulação desses ácidos;
-Uso de enzimas, como a papaína ou bromelina, obtidas do mamão e do abacaxi;
-Uso de bactérias ou leveduras, originando a Silagem Biológica. As bactérias mais utilizadas são as do grupo ácido láticas Lactobacillus e Lactococcus; leveduras do gênero Hansenula e Saccharomyces e fungos Aspergillus oryzae.
As vantagens da Silagem Biológica são a facilidade de preparação, ausência de riscos de acidentes ou toxidade e, o baixo custo.
Silagem
A preservação do pescado mediante o método de silagem biológica, depende da formação de ácido lático e, para que tenha êxito, é preciso favorecer o predomínio de bactérias Homofermentativas (lactobacilos que produzem duas moléculas de ácido lático e uma molécula de glicose). Estas bactérias não se encontram em grande número no pescado ou no meio aquático, sendo necessário agregar um inóculo iniciador de lactobacilos para favorecer sua multiplicação. Existem muitas maneiras de se agregar inóculo de lactobacilos, podendo-se partir de vegetais fermentados em anaerobiose, produtos marinados, etc., dos quais se obtém cepas de lactobacilos capazes de efetuar a fermentação dos açúcares. Outras fontes são os produtos lácteos, dos quais o mais utilizado é o iogurte, onde se desenvolvem os Lactobacillus bulgaricus e Streptococcus thermofilus.
As bactérias ácido láticas têm metabolismo energético exclusivamente do tipo fermentativo. Sua principal fonte de energia são os carboidratos solúveis e certos ácidos orgânicos. Para que a fermentação biológica ocorra, é necessário que as bactérias láticas convertam os açúcares presentes em ácidos orgânicos, fazendo com que o pH do meio decresça. Como o pescado contém somente pequena quantidade de carboidratos, é necessário agregar quantidades maiores de outros carboidratos como fonte de energia. A utilização da sacarose e/ou melaço como fontes energéticas para as bactérias láticas nos garante uma eficiente fermentação nos resíduos de pescado.
As bactérias láticas são produtoras de várias substâncias que são favoráveis para o processo de silagem:
- secreção de antibióticos que impedem o crescimento de outros germes patógenos e putrefativos como salmonela, listéria, estafilococos e clostridium. A diminuição do pH a valores de 4,2 ou menores, combinados com a ação dos antibióticos, exerce uma redução radical destes microorganismos;
- peróxido de hidrogênio, efetivo para inibir o crescimento de patógenos Pseudomonas e Staphylococcus aureus,
- Diacetilo, responsável pelo aroma agradável da silagem (frutal) e inibidor de fungos, bactérias gram negativas e positivas (exceto as láticas).
Fluxograma
O fluxograma ao lado mostra as diferentes fases da elaboração de uma silagem de pescados, ilustrado com fotos do Projeto Titicaca, tomadas durante o XIV Curso Internacional de Tecnologia de Processamento de Produtos Pesqueiros ITP/JICA em Callao - Perú.
Seleção de resíduos (Foto 1): vísceras, cabeças, espinhas, pescados lesionados, fora do tamanho padrão, espécies de baixo valor comercial, etc... Dependendo do tipo de resíduo utilizado como matéria-prima no processo fermentativo, será obtido um produto final com características determinadas de pH, conteúdo protéico, conteúdo em lipídeos, grau de proteólise, vitaminas e minerais.
Cocção e moagem dos resíduos, com posterior adição de fonte de carboidratos e fermento lático: os resíduos de pescado são submetidos a cocção a 100ºC x 20 min., visando-se paralisar a ação enzimática e destruir bactérias patogênicas e putrefativas presentes nos resíduos crus. A água de cocção deve ser drenada, e após esfriar em temperatura ambiente, o resíduo é moído e mesclado com sacarose, melaço e inóculo de iogurte (Foto 3 e 4).
Incubação e fermentação: a temperatura em que vai se realizar o processo de fermentação é um fator determinante para a produção de um produto estável.
A temperatura ideal é de 40ºC por 48 hs, com o pH alcançando valores de 4,0.
Armazenamento:
uma vez produzida a fermentação lática, o produto tende a estabilizar-se no pH e incrementar-se na acidez lática. Deve ser armazenado em recipientes fechados, à temperatura ambiente, por até 6 meses.
O pH alcançado é importante para conferir uma conservação mais prolongada do produto acabado (quadro acima). Tem-se observado que silagens obtidas de resíduos de pescado com pH final entre 3,9 e 4,7 permanecem estáveis durante 30 a 160 dias.
Composição e valor nutritivo
Os lactobacilos são capazes de realizar suas atividades metabólicas sem grandes alterações do substrato a fermentar, por isso não são perdidos os componentes básicos dos alimentos e o valor nutritivo do produto inicial.
A composição (quadro abaixo) e o valor nutritivo da silagem depende principalmente do resíduo, do tipo de açúcar e das características do inóculo bacteriano utilizados.
Em base seca temos 46% de proteína, 25% de gordura e 18% de cinzas, resultando num insumo de boas qualidades nutricionais.
Rações
A incorporação de silagem de pescado fabricada artesanalmente à rações comerciais é uma prática que tem sido realizada com ótimos resultados, a exemplo dos criadores de trutas arco-íris do “Projeto Especial Trutas Titicaca” no Lago Titicaca em Puno no Perú.
Pela concentração de proteínas da silagem, a relação de substituição da farinha de pescado pela silagem em dietas de frangos, suínos, patos e novilhos é de aproximadamente 3:1 (3 kg de silagem para 1 kg de farinha de peixe). Quando se trata de silagem integral (usando todo o pescado), a relação cai para 2 - 2,5 kg de silagem para 1 kg de farinha.
Em dietas balanceadas para peixes cultivados no Brasil, recomendo a realização de ensaios experimentais utilizando-se silagens de diferentes resíduos de pescado, observando-se o efeito no desenvolvimento dos mesmos.
Vale ressaltar que a silagem de resíduo de pescado não pretende igualar-se à farinha de peixe. O que se busca é uma alternativa viável e racional para os resíduos de pescado, visando a diminuição de impactos ambientais, ao mesmo tempo em que se pode melhorar a qualidade e o preço das rações.
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